Luis Felipe Miguel, cientista político da UnB, critica iniciativa de Temer de mudar o sistema eleitoral. "Nada que venha de governo ilegítimo pode ser legítimo"
Por Ingrid Matuoka
Pressionado
pelas delações da Odebrecht, que devem expor um imenso esquema de corrupção e
financiamento ilegal de campanha, o governo Michel Temer se mobiliza para
iniciar discussões sobre uma reforma eleitoral como parte da reforma política.
Formatada
pelo próprio Temer, com as companhias dos presidentes do Tribunal Superior
Eleitoral, Gilmar Mendes; do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE); e da Câmara,
Rodrigo Maia (DEM-RJ); a ideia seria reestruturar o número de partidos e adotar
o voto em lista fechada.
Uma comissão de "notáveis" deve ser
convocada e tem, até aqui, três nomes, todos eles ligados de alguma forma ao
PSDB. Segundo o site Poder360, integrariam esse comitê os
cientistas político Bolívar Lamounier e Antonio Lavareda e o ex-secretário da
Receita Federal no governo FHC Everardo Maciel.
Para Luis Felipe Miguel, professor do
Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), há formas mais
adequadas de reduzir os custos das eleições do que as projetadas pelo Planalto.
Além disso, afirma Miguel, um sistema eleitoral mais democrático depende
de um debate igualmente democrático. "Só que agora temos o agravante
de ter um governante que não tem legitimidade popular tomando a frente dessa
discussão", afirma.
CartaCapital: Diante da crise e das delações da
Odebrecht, o governo traz à tona a reforma política, eterna panaceia do sistema
político. Como o senhor vê isso?
Luis Felipe Miguel: O Brasil tem um problema
estrutural na relação entre a democracia eleitoral e a sociedade capitalista,
porque existe uma tendência de fazer o dinheiro se transformar em poder
político.
E sempre
se conviveu com isso como se não houvesse solução. Mas há. Para resolver parte
significativa do problema, é necessário que o financiamento de campanha seja
exclusivamente público, acompanhado por um radical barateamento dos custos.
Mas
financiamento público sem o barateamento é um contrassenso. Não tem sentido
gastar tanto dinheiro público para fazer campanhas eleitorais manipulatórias,
porque quanto mais dinheiro, maior o potencial manipulatório.
Outro
ponto é que sem o barateamento será mais difícil controlar o dinheiro
privado. Se colocarmos tetos franciscanos nas campanhas com financiamento
público exclusivo será fácil verificar quando uma campanha foge desse modelo.
O financiamento
público exclusivo de campanha também resolve a polêmica sobre o que é caixa 2,
porque todo dinheiro privado para candidato passará a ser entendido como
corrupção.
CC: Para reduzir os custos de campanhas, o ministro
Gilmar Mendes sugere a adoção de voto em listas partidárias, combinada ao
financiamento público. Funcionaria?
LFM: O voto em lista reduz custo, mas tem suas
contraindicações, como qualquer sistema eleitoral. Mesmo que tenhamos o modelo
mais perfeito do mundo, sem mudar o monopólio de massa, a nossa democracia vai
continuar muito deficiente.
O sistema
de listas abertas que temos hoje tende a encarecer campanhas pela
multiplicidade de candidatos que competem duplamente: com as outras listas
partidárias e dentro da própria lista. Mas tem suas vantagens também, por
exemplo, dá maior grau de autonomia ao eleitor.
O
problema das listas fechadas é que a decisão final fica na mão das burocracias
partidárias, que são em geral organizações oligárquicas controladas por castas.
No Brasil
só poderemos discutir fechamento de lista seriamente se os partidos políticos
se redemocratizarem, se tiverem de fato uma base militante que controla as
direções. Do contrário, estaremos oligarquizando a disputa política.
CC: A proposta de lista fechada é conveniente
considerando que as delações da Odebrecht devem envolver muitos dos candidatos
em 2018?
LFM: Eu não sei como isso vai se desenrolar, até
porque a experiência recente nos mostra uma mídia e um sistema de controle
muito seletivos, ou seja, os custos que essas delações estão gerando para os
partidos políticos não são proporcionais à gravidade das denúncias. Acusações
igualmente graves levam a custos completamente diferentes conforme atingem A ou
B.
Mas
existe uma vantagem. Na medida em que essas delações para os partidos à direita
do espectro político são absolutamente personalizadas na mentalidade que se
constrói para a opinião pública, a despersonalização das campanhas eleitorais
pode ser positiva.
Em termos
literais, as denúncias a Michel Temer e Romero Jucá acontecem nominalmente,
enquanto o PT é citado como um grupo. Então a lista fechada para o PMDB, PSDB,
entre outros, pode ser vantajosa porque seus rótulos foram menos chamuscados do
que o do PT.
CC: Em seu estudo Coligações eleitorais e
fragmentação das bancadas parlamentares no Brasil conclui-se que a
proibição das coligações retira da Câmara dos Deputados apenas partidos sem
perfil claro. Essa alternativa garante redução nos custos sem perda para a
representatividade?
LFM: A questão das coligações tem um ponto importante.
Em Brasília, os eleitores que votaram para a Câmara dos Deputados em Erika
Kokay (PT), defensora da agenda feminista e LGBT, elegeram também o pastor
Ronaldo Fonseca, um fundamentalista que ficou em segundo da lista por causa de
uma coligação esdrúxula do PT com o PROS.
Mas o que
eu acho que pode, mesmo no regime de lista aberta, favorecer a redução dos
custos de campanhas, é a redução do número de candidatos. O Brasil é um dos
únicos países em que um partido ou uma coligação pode lançar mais candidatos do
que as vagas em disputa, o que é feito para acomodar os diversos grupos dentro
de partidos grandes.
Hoje,
para cada 10 cadeiras em disputa os partidos lançam 15 candidatos. Isso não tem
sentido. A redução para no máximo 100% das cadeiras ou menos, até porque é
absolutamente implausível que um partido eleja todos os candidatos e inclusive
nem é bom para a democracia, já resultaria em grande redução do número de
candidatos.
Outro
ponto é o autofinanciamento. Tem candidato que tira 1,5 mil reais do bolso para
fazer uma campanha, e tem aqueles que são os financiados pelos grandes grupos
econômicos, direta ou indiretamente.
Um
milionário como João Doria (PSDB) disputar a eleição contra uma pessoa mais pobre
quebra, inclusive, a condição de igualdade que deveria imperar em uma República
democrática.
CC: E a cláusula de barreira geraria qual efeito?
LFM: Nós já temos cláusula de barreira no Brasil,
embora não esteja expressa na lei. Quando se distribui as cadeiras, primeiro
vemos quantas os partidos conseguiram pelo quociente eleitoral, depois são
distribuídas as sobras do quociente.
No geral,
as sobras são grandes porque são muitos partidos disputando com votação
fragmentada. Mas quem não obteve uma cadeira na distribuição inicial, ou seja,
quem não obteve o quociente eleitoral, não disputa as sobras. Então o quociente
eleitoral serve como cláusula de barreira.
Mas a
cláusula de barreira em si implica na perda de expressão da vontade de parte do
eleitorado. Se considerarmos que no voto o eleitor expressa alguma vontade, a
cláusula de barreira faz com que o legislador determine que quem não obteve X%
dos votos não tem direito de ter sua vontade manifestada nos espaços de tomada
de decisão. Isso é arbitrário. Por que quem obteve 6% pode e quem teve 5% não?
Inclusive
porque esses representantes vão para o Parlamento, como o próprio nome sugere,
onde se conversa, e a sociedade ganha quando há diferentes perspectivas,
valores e interesses conversando junto. A cláusula de barreira impede que esses
interesses se manifestem.
Mais do
que isso, estamos em um país de grande volatilidade eleitoral. Partidos grandes
se tornam pequenos rapidamente e vice-versa, uma vez que nosso sistema
partidário não está consolidado.
A
cláusula de barreira é uma tentativa de congelar esse processo porque os
partidos que não passarem, e que portanto não terão representação no
Parlamento, dificilmente vão crescer nas eleições seguintes. É congelar algo
que é dinâmico.
Ela é um
mecanismo certo para diminuir a fragmentação partidária no Brasil, mas é um
remédio que tem efeitos colaterais que superam muito essa possível vantagem,
porque reduz a expressão da vontade popular por meio do voto.
CC: A reforma eleitoral tem sido formatada por Gilmar
Mendes, Michel Temer, Eunício Oliveira e Rodrigo Maia, estes últimos três
citados na Operação Lava Jato. Pode haver legitimidade em uma proposta
formulada por eles?
LFM: Nada que venha de um governo ilegítimo pode ser
legítimo. O PT teve seus erros sérios, desprezou a importância do Legislativo e
permitiu que presidentes petistas fossem eleitos acompanhados de Congressos
cada vez mais conservadores. Contudo, quem está tomando a frente dessa reforma
é um grupo que não conquistou o governo pelo voto popular.
É
antidemocrático e uma contradição alguém que ocupa um cargo que não lhe foi
dado pelo voto popular querer determinar as maneiras pelas quais o voto vai ser
expresso no poder político.
Uma
reforma política séria não é só eleitoral, é muito mais ampla, e tem que ser
discutida para além da elite política estabelecida.
O
principal problema do nosso sistema político é que nossos representantes
eleitos respondem muito pouco aos interesses da população. Uma reforma exigiria
abrir a conversa para as organizações da sociedade civil, dos movimentos
sociais organizados, para aqueles grupos que estão permanentemente verbalizando
interesses da sociedade e que não encontram ressonância nos espaços de
representação.
Esses
grupos têm muito a dizer como fazer para o nosso sistema político funcionar
melhor. Os problemas são percebidos por quem está do lado de fora, não pela
elite privilegiada que ocupa os espaços de poder.
O Brasil
historicamente reduz a questão sobre reforma política a algo técnico que deve
ser resolvido dentro do Parlamento, eventualmente com pressões e pitacos de
outros poderes da República.
Se o
objetivo é criar um sistema mais democrático, a própria discussão tem que ser
mais democrática. Só que agora temos o agravante de ter um governante que não
tem legitimidade popular tomando a frente dessa discussão.
Fonte: Carta Capital
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